Ação Policial nos Complexos do Alemão e da Penha: Necropolítica e Banalidade do Mal
A dor é mesmo insuportável. As imagens dos corpos abandonados, enfileirados são aterradoras. A mãe que chora, inconsolável, sobre o corpo de seu filho morto, deformado por tantos tiros, cala fundo em nossas consciências. Pobres, negros, jovens! Qual o nome daquele jovem rapaz negro, de apenas 14 anos, que foi morto com tamanha brutalidade? Tantos mortos sem nome, mas com uma origem e um destino em comum. Toda essa violência não pode ficar escondida, no silêncio cúmplice de uma sociedade indiferente e endurecida, sob a desculpa hipócrita da guerra às drogas.
Extermínio, genocídio, chacina, massacre: qual o adjetivo que melhor define a barbárie imposta à população dos territórios das comunidades dos Complexos do Alemão e da Penha, no fatídico dia 28 de outubro de 2025, na cidade do Rio de Janeiro, sob o governo de Cláudio Castro, do Partido Liberal? Como designar uma violência que é inominável? Por que uma parcela significativa da sociedade não se escandaliza, nem revela indignação, diante da expressão do mal radical? Sem direito à justiça, nem ao contraditório, os tiros de alto calibre selam a sentença: para aqueles crimes, para aquelas pessoas, muitas inclusive sem nenhuma acusação formal, não cabe o clamor por anistia, a execução deve ser sumária.
O que aconteceu nas comunidades do Alemão e da Penha, onde moram mais de 110 mil pessoas, foi uma violência direcionada, uma ação deliberada de extermínio, repetindo o roteiro de uma história perversa, demarcada pelo racismo e pela aversão aos pobres. O cenário escancara um projeto de genocídio da população negra, também denunciado pelo Atlas da Violência de 2024, no qual simultaneamente homens jovens representam o dobro das vítimas da violência letal no país e os homicídios de pessoas negras correspondem a 76,5% do total de assassinatos no Brasil.
Os dados estatísticos evidenciam — e este abominável massacre enfatiza — o desprezo deste Estado com relação à vida das pessoas que moram nas comunidades periféricas. Sem as garantias do Estado Democrático de Direito, sem acesso aos direitos mais básicos de cidadania, nos territórios das comunidades vigora apenas a necropolítica, a política da morte, em um estado de exceção que suprime todos os preceitos legais. A cor dos corpos expostos demonstra e repete para quem especificamente toda violência letal tem sido, historicamente, direcionada e quais são seus objetivos reais. Sob a banalidade do mal, o Brasil assiste perplexo, cotidianamente, ao processo de extermínio que destrói famílias e sonhos pela violência policial que pauta as suas ações na morte de pessoas negras e pobres. É urgente se compreender que são vidas humanas que estão sendo descartadas e dizimadas em virtude de um sistema que despreza a existência desses corpos. Como em uma distopia, o poder público falha ao não fornecer condições dignas de vida para uma população que não deixa de lutar, diariamente, contra um sistema projetado para exterminar vidas.
Designada oficialmente como megaoperação, a chacina, que resultou na morte de 121 pessoas, conduzida sob a tutela do governador Cláudio Castro (PL), foi amplamente apoiada e defendida por diversos políticos de extrema direita, que também se tornam cúmplices ao apoiar a lógica falaciosa de um tipo de política de segurança pública cujo objetivo é uma limpeza étnica. Na operação no Rio de Janeiro ecoa outras cenas em perspectiva mundial, como o Massacre do Carandiru em 1992, a Guerra Civil no Sudão desde 2023, o genocídio continuado em Gaza, onde convergem as diversas faces das políticas coloniais impostas em diversos territórios em que a população é marginalizada a partir de sua raça, etnia e crença religiosa.
No cenário brasileiro, marcado por uma extrema violência, pela profunda desigualdade social, pelo analfabetismo, pela falta de acesso ao saneamento básico e pela ausência de condições dignas de trabalho e educação, demarcando uma realidade que insiste em negar direitos básicos garantidos em nossa Constituição Federal de 1988, torna-se tarefa política fundamental um vasto movimento de mobilização, afirmando a dignidade e o pleno valor da vida da população pobre, negra e juvenil e exigindo a imediata cessação deste estado contínuo de violência e extermínio. A base para uma outra sociedade, profundamente antirracista e libertária, pautada no princípio ético da alteridade, passa pela construção de uma educação emancipadora, decolonial e dialógica.
É aviltante e inaceitável que o massacre de pobres e negros, ao arrepio dos princípios mais básicos da justiça e do processo legal, continue sendo estratégia política eleitoral. O ódio contra o outro — evidenciado no racismo, na intolerância religiosa, na criminalização da pobreza — representa um profundo retrocesso civilizacional. O extremismo de direita não pode se utilizar do medo e da perseguição como plataforma para angariar votos. A sociedade brasileira precisa resistir e dizer não à barbárie! Não há democracia possível sobre os escombros de vidas negras!
Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI-IFSP)
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